Os abrigos humanitários para migrantes venezuelanos em Roraima sob o viés das normas internacionais de WASH do Manual Esfera
Quando se fala em campo de refugiados, a tendência é que venha à mente algum espaço na África ou no Oriente Médio, com milhares de pessoas vivendo em condições subumanas, sujeitos a todo tipo de violência que coloca a vida sob ameaça, alimentando-se de forma precária, habitando moradias improvisadas, sem tratamento adequado de esgoto, ou tendo que caminhar longas distâncias para ter acesso à água.
A imagem não é à toa, pois realmente milhões de pessoas no mundo vivem nestas condições. Apesar de estar longe de ser um cenário paradisíaco, a resposta humanitária à crise migratória venezuelana no Brasil desconstrói bastante este quadro. Nos abrigos da Operação Acolhida, força tarefa humanitária coordenada pelo governo brasileiro, por meio das Forças Armadas, em conjunto com as agências da ONU e mais de 100 organizações da sociedade civil, a realidade de migrantes e refugiados é bem mais amena – sem aqui menosprezar todo o sofrimento pelo qual passam e que carregam da migração forçada.
Os espaços dos abrigos são seguros em relação ao meio externo, contam com portaria e empresa de segurança; os beneficiários recebem alimento, especialmente preparado para eles, em marmitas, três vezes ao dia; apesar de serem espaços improvisados, muitas vezes em ginásios esportivos, cada família tem um espaço particular onde guardar seus pertences; e por se tratar de assentamento em um cenário urbano, além de proporcionar possibilidade de inserção socioeconômica, uma parte da questão do abastecimento de água e do saneamento fica automaticamente resolvida.
O grande desafio é transformar estes locais improvisados – são mais de 10 abrigos humanitários no estado – em espaços que favoreçam o resgate da dignidade humana e impulsionem os acolhidos a reconstruírem suas vidas. Neste sentido, entra a providencial normatização contida no Manual Esfera, do qual a Fraternidade – Federação Humanitária Internacional (FFHI) é ponto focal no Brasil. O Manual estabelece os parâmetros mínimos para a resposta humanitária, e por meio dele é possível medir se as ações implementadas são satisfatórias para a fase da resposta em andamento ou se elas carecem de melhoria para chegar a um standard mínimo.
WASH – Abastecimento de Água, Saneamento e Promoção de Higiene
O primeiro dos capítulos técnicos do Manual Esfera trata das normas mínimas para Abastecimento de Água, Saneamento e Promoção de Higiene – WASH, na sigla em inglês. Isso, porque: “As pessoas afetadas por uma crise são mais suscetíveis a doenças e à morte em decorrência delas, principalmente as diarreicas e as infecciosas. Tais doenças estão intimamente relacionadas a um saneamento e abastecimento de água inadequados e a higiene precária.” (O Manual Esfera, pág. 96)
Assunto extremamente relevante em qualquer tempo, torna-se uma prioridade absoluta em tempos de pandemia de covid-19. “O principal objetivo dos programas WASH em respostas humanitárias é reduzir os riscos à saúde pública, criando barreiras às principias vias de infecção humana por patógenos. Dentre as principais atividades destes programas, estão:
- promover boas práticas de higiene;
- fornecer água potável segura;
- fornecer instalações sanitárias apropriadas.” (adaptado de O Manual Esfera, pág. 96)
Apesar do fato de que assentamentos em cenários urbanos facilitam o acesso à água potável e saneamento, isso não quer dizer que não é necessário um grande empenho de energia para que o direito dos migrantes e refugiados que vivem nos abrigos seja garantido. Como os números são expressivos, chegam a quase duas mil pessoas somente nos cinco abrigos indígenas sob gestão da Fraternidade – Humanitária (FFHI) em Roraima, a infraestrutura é também significativa e exige manutenção permanente.
Todos os abrigos têm bebedouros com filtros de água, pontos de acesso à água potável para cozinhar e para limpeza, lavanderias, banheiros organizados por gênero e sistemas de coleta de água cinza e negra. O esforço em prol da melhoria das estruturas, com vistas à adequação aos padrões humanitários internacionais, é constante. Como exemplo, em alguns abrigos os banheiros são containers adaptados, e em outros foram construídos em alvenaria para melhor atender a população. Todos os abrigos tiveram lavanderias construídas e, com o surgimento da covid-19, receberam estruturas para lavagem de mãos na portaria. Também foram equipados com lavadoras à pressão para limpeza dos ambientes comunitários, entre outros equipamentos e materiais.
Emergências dentro da resposta emergencial
Como trata-se de uma resposta a uma emergência, as emergências sempre aparecem. Como no caso do abrigo Janokoida, onde queimou a bomba hidráulica que eleva a água de uma cisterna subterrânea, a qual recebe água da companhia de abastecimento, até a caixa de distribuição local, que fica no alto de uma estrutura metálica especialmente construída pela Operação Acolhida para adequar o espaço do abrigo. Durante o período necessário para fazer o conserto da bomba, as Forças Armadas se encarregaram de fazer diariamente o abastecimento da caixa de água com um caminhão pipa, suprindo assim a necessidade imediata.
Manutenção periódica
Mais além das emergências, estão as manutenções periódicas. É o caso dos filtros de bebedouros, por exemplo, que tem um prazo de validade determinado e precisam ser trocados com frequência. Além da troca, é feita a limpeza dos bebedouros com regularidade, o que está a cargo da equipe da ADRA (Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais), que também atua nos abrigos.
Adequação aos traços culturais de cada etnia
Maria del Carmen, 36 anos, indígena da etnia E’ñepa, está há três meses no Brasil e há dois meses no abrigo Jardim Floresta. Ela conta que sempre há água, “todos os dias, para tomar banho, para lavar, limpeza, sempre há, não tenho problemas com a água; também para cozinhar, dar banho nas crianças… a do filtro, essa usamos para beber”. Também assegura que o ponto de água fica bastante próximo à sua habitação, assim como um dos filtros de água.
O abrigo Jardim Floresta conta com a presença de duas etnias venezuelanas: além dos E’ñepa, em menor número, estão também os Warao. Para contemplar os costumes e cultura de cada etnia, e visando a convivência pacífica entre elas, o abrigo vem sendo adaptado para que cada uma delas tenha seu próprio espaço comunitário no tocante a WASH. O primeiro passo foi a divisão dos banheiros, que além de estarem organizados por gênero, estão também direcionados para cada etnia. Um filtro de água foi instalado próximo da área onde estão os E’ñepa, facilitando assim o acesso. Está em implementação a construção de um espaço para lavagem de roupas e utensílios específico para eles também, nas imediações de seus alojamentos.
Trabalhando pela vida
“Doenças relacionadas à água, saneamento e higiene, em crises humanitárias, são a causa de enfermidades importantes e de mortes que poderiam ser evitadas” (O Manual Esfera, pág. 101)
Daniel, 37 anos, trabalha para a Fraternidade – Humanitária (FFHI) como coordenador de infraestrutura e WASH. Ele é cubano, formado como engenheiro civil em seu país, e conseguiu que seu diploma fosse revalidado no Brasil, onde vive desde 2017. Segue o seu relato:
“A minha história é igual à dos beneficiários para quem eu trabalho. Eu também sou migrante, sou refugiado. Apesar de que para os cubanos é difícil, há pouco mais de um mês recebi a notificação de que me aceitaram como refugiado aqui no Brasil.”
“O objetivo do meu trabalho como coordenador de infraestrutura e WASH é a avaliação preventiva das estruturas. Na parte hidráulica, há o fornecimento de água e a parte de esgoto também, além da drenagem pluvial. O trabalho é detectar o problema e buscar a solução. Eu, como engenheiro civil, muitas vezes tenho a solução à mão; muitas vezes posso até eu mesmo executar, com a ajuda de algum beneficiário que tenha conhecimentos do ramo; mas outras vezes a solução do problema não está nas nossas mãos e precisa ser buscada através de alguma parceria.”
“Na estrutura de WASH a Fraternidade – Humanitária (FFHI) não trabalha sozinha, trabalha em conjunto com outras entidades. A parte de fornecimento de água é com a força tarefa das Forças Armadas, que faz a ponte com a companhia de água; a parte de saneamento e higiene vem reforçada com Adra e Unicef.”
“Na parte de WASH, como administrativo, se eu sei que tem algum problema, eu tenho que garantir que as condições básicas sejam mantidas. São direitos dos abrigados que tenham água potável, os banheiros têm que ter condições de utilização, lavatório de mãos na entrada do abrigo e no refeitório.”
“Do ponto de vista pessoal, eu realmente me sinto um privilegiado, porque eu vivi na própria carne – eu sou, como comentei anteriormente, migrante e refugiado igual. Eu me sinto abençoado, quase: primeiro, por trabalhar para a Fraternidade – Humanitária (FFHI), que é uma organização não-governamental sem fins lucrativos; segundo, porque posso ajudar a eles, porque eu me vejo no lugar deles… Eu tive a sorte de conseguir trabalho, vê? Mas, se não, eu estaria vivendo em um abrigo assim, e para mim seria maravilhoso se alguém pudesse me ajudar.”
“Eu trabalhei para a Fraternidade – Humanitária (FFHI) como auxiliar de participação comunitária, depois fui oficial de distribuição e depois oficial de registro; e agora, graças a Deus, o meu trabalho tem a ver com a minha formação de engenheiro civil. Eu me sinto bem; e agradecido, muito!